A pé ou de carro

O tempo trata bem a Mona Lisa

O tempo tem tratado bem a Mona Lisa, poupando-lhe as feições de maneira que ainda pode ser vista quinhentos anos depois. A vida deu-lhe aventuras: esteve na corte do rei; viu o imperador dormir; foi raptada e guardada no fundo de um baú durante dois anos, até ser encontrada por não dar lucro escondida.

Houve uma grande resistência à sua primeira viagem transatlântica, porque, antes de ser raptada, a Mona Lisa entrara em França pela mão do pintor (antes das guerras, da canalização e da luz elétrica, da revolução francesa e da Reforma — até antes da imprensa). França inteira opôs-se, o Le Figaro escreveu uma carta aberta, funcionários do Louvre ameaçaram demitir-se.

Do outro lado do Atlântico, hesitavam em recebê-la. Quereriam arriscar estragar uma senhora de quinhentos anos, mortalmente sensível à luz, à humidade e à temperatura? De ambos os lados, devem ter sido muitas as noites sem dormir e os comprimidos para as dores de estômago.

A Mona Lisa acabou por viajar, em primeira classe, com escolta policial e vigilância 24 horas por dia. Quando a devolveram, vinha com um papel onde esse lado do Atlântico se escusava de toda e qualquer responsabilidade sobre o quadro contra-entrega. Sumariamente, “qualquer problema daqui para a frente, não fomos nós”.

Em qualquer viagem, a luta constante é para a manter indiferente — indiferente ao caixilho, ao transporte, ao inverno gelado ou à humidade das chuvas, aos inevitáveis manuseios — para não provocar o tempo que até agora a tem tratado bem.

Não que, em casa, ela esteja sossegada. Se não são pessoas a pedi-la emprestada, a raptá-la ou a atirar-lhe jarros, são as térmitas a pô-la no menu e a humidade a criar craquelure. Há meio milénio, a Mona Lisa era uma mulher de carne e osso com cinco filhos e um marido no mercado têxtil; a madeira em que ela foi pintada já existia no Paleoceno. As pressões que a empenam hoje são as mesmas da Itália renascentista e de uma Terra deserta de gente: o tempo é mestre no seu ofício.

Um dia, ela será estalada em duas, perdida em viagem, comida por bichos, esfumada por inteiro ou pulverizada na explosão solar. Para já, o mestre avança e Deus queira, dizem todos, que trate bem a Mona Lisa.1

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