Ritmos da quarentena
Às 7 da manhã, gaivotas voam em silêncio como se estivessem a acordar. Já é dia, mas não há sol nem sombra nos quintais e varandas da rua onde todo o tipo de natureza importada ou preservada retém a humidade da noite: filas de plantas em vasos de plástico e barro, sebes e arbustos, plantas trepadeiras, uma árvore. Todas contribuem para o cheiro de um dia no início. A paisagem sonora é ornitológica, com rolas e pardais (as gaivotas estão prestes a juntar-se). É fácil acreditar que novas misericórdias aguardam.
Num dia de isolamento, não haverá grandes diferenças na paisagem sonora. Ouve-se o ocasional carro solitário, a torre do relógio cuja nova função é marcar os aplausos das varandas às dez. Ouvimos que noutros cantos do mundo cabras passeiam em vilas e leoas tiram sestas no asfalto. Os ritmos do mundo urbano foram suspensos.
Eu gosto muito disso.
Deixámos para trás muita coisa supérflua: o culto do cool, a comparação social, a turistificação. «Há menos de um mês, quase todos nós estávamos hipnotizados no quotidiano consumista, minados pelo vírus do desperdício», escreve Paulo Dentinho. Há um mês que não guardamos conta de quem tem o relógio mais caro ou de quem trabalhou mais horas para nos situarmos numa escala de produtividade, posse e performance.
Essa busca primordial de aprovação sempre foi uma fraca estratégia para descobrir quem se destaca como ser humano; e sempre nos prejudicou a nós e ao planeta, desde a Idade de Bronze, em que ovos de avestruz eram símbolo de estatuto; ou da era a que chamamos tempos bíblicos, quando Jesus se virou para um Pedro com vestígios de inveja e lhe disse «que tens com isso? Tu, segue-me».
Tendo-se feito ouvir o importante no silêncio, parecemos ter despertado uma consciência coletiva sobre nós, os outros e o planeta. São várias as notícias sobre o descanso que temos dado à Terra, como tartarugas a regressar à costa tailandesa e a constatação de que emitimos menos de um milhão de toneladas de CO2 por dia. (E de como o temos tratado até aqui: até o novo vírus é fruto da nossa interação com a vida selvagem.)
A esperança é que essa consciência penetre o solo. Que sejamos mais críticos sobre a forma como nos movemos no mundo, e aproveitemos este tempo para prepararmos o solo para novas misericórdias.