Nota sobre matar a sede
Numa história do Velho Testamento, um homem chega a casa furioso. Reúne a mulher e os amigos e, para se acalmar, começa a gabar-se da sua fortuna, do número de filhos, do prestígio do seu cargo, da confiança que o rei tinha nele. Mais: ele estava a ficar próximo do rei e da rainha. Até já o tinham convidado para jantar.
Por fim, diz: “nada disto me satisfaz, enquanto vir esse judeu Mardoqueu no palácio do rei”.
Esta é a minha frase preferida de Haman, o vilão no livro de Ester. Haman estava furioso por causa de Mardoqueu, um homem que recusava curvar-se perante ele. Isto melindrava-o, ao ponto de desprezar o que tinha para querer matar Mardoqueu. A riqueza, a autoridade e estatuto, o número de filhos — as coisas por que se pautava o sucesso de um homem — não significavam nada enquanto Mardoqueu não morresse. Ou seja, enquanto uma coisa, outra coisa, não fosse feita.
Esta história dá largas à ganância que todos temos cá dentro. Todos temos um poço que nunca queremos encontrar vazio. Haman acredita que uma coisa há-de encher o poço: fazer uma forca no quintal e pendurar de lá Mardoqueu. É uma personagem cruel, calculista, poderosa, mas sequiosa de admiração e adoração alheia. Quando não lhe matam a sede, ele — enganado pela serpente que semeou o caos uns bons capítulos atrás — faz o que todos, uma vez ou outra, fazemos: concentra-se na escassez e não na abundância.
Imaginemos que Haman tinha o que queria. Quantos dias passariam até ele querer outra coisa, como beijos em cima de vénias ou o poder do rei?
Sinto a garganta de Haman tão áspera como lixa, ele desesperado ao descobrir que Mardoqueu era pó e não água.