Daniel não está
«A ausência de Daniel nesta cena despertou a imaginação dos comentadores»,1 diz uma nota de estudo sobre o episódio da estátua de ouro.
Que episódio é este? No Velho Testamento, o rei Nabucodonosor — o mesmo dos Jardins Suspensos da Babilónia — manda erigir uma estátua. Ao soar das «trompas, oboés, cítaras, harpas, liras e saltérios», os «povos de todas as nações, raças e línguas»2 têm ordens para se curvarem perante ela em adoração.
Nisto, chega aos ouvidos do rei que três homens se recusam por acreditarem que isso contraria o seu Deus. O rei chama-os e ameaça lançá-los ao fogo. Eles não lhe respondem com cerimónia; não o saúdam com um «viva o rei para sempre». Dizem apenas: «Não te devemos explicações. O Deus que servimos pode salvar-nos da tua mão, e vai fazê-lo; mas mesmo que não o faça, queremos que saibas, ó rei, que não servimos os teus deuses e não nos curvamos perante esta estátua.»3
A primeira coisa impressionante nesta história é a resposta dos três homens, que constituía um elogio à resistência. A segunda é que nenhum destes homens é Daniel, o herói do livro: são Mechac, Chadrac e Abed-Nego, que até agora estiveram mudos e foram simplesmente um apêndice de Daniel. Este é o único capítulo em que Daniel não aparece (nem é mencionado), e o buraco deixado por ele nesta história foi criado por tudo o que a antecede.
No Velho Testamento, este livro chama-se… Daniel. Ele é o herói. Quando chegamos à estátua, já ele conquistou um estatuto de semi-deus: no episódio anterior, o rei curva-se perante ele, manda que se lhe queime incenso, dá-lhe prendas, fá-lo líder dos sábios e muda-o para o palácio. Antes disso, ficamos a saber que ele era bem-parecido, de boas famílias, ao mesmo tempo íntegro e inteligente. O livro está organizado de tal forma que, quando chegamos ao episódio da estátua, não ver Daniel é uma surpresa.
Multiplicam-se as hipóteses: estava a ver à distância; estava fora em trabalho; estava lá, mas tinha alcançado tal estatuto que não iriam começar por ele se encontrassem alguém mais abaixo que pudessem punir; esta história foi escrita separada das outras e acrescentada depois. Os autores não nos dizem e não explicam. Como se tudo o que tivéssemos de saber fosse «Daniel não está e a razão não interessa».
Qual seria o valor literário de um Daniel ausente?
Há um contraste entre Nabucodonosor e Daniel. Nabucodonosor é um homem poderoso e desconfiado, arrogante e cruel. Ao medo de perder o seu poder, responde com acessos de fúria e declarações desse poder constantes. No auge da sua história, ele desce ao antro da loucura, e só regressa tendo dissolvido o seu ego sem fronteiras.
Por outro lado, Daniel é um homem que não se agarra ao poder ainda que ele cresça, e que insiste que isto não é sobre ele. As suas conversas com o rei têm sempre este teor; Daniel aponta sempre para o Deus dele. Não é porque Daniel tenha mais sabedoria do que outros, diz ele, que alguma coisa lhe é revelada.
Daniel pode dizer que isto não é sobre ele, mas é difícil acreditar. Um homem bem-parecido, de boas famílias, íntegro e inteligente, que caiu nas boas-graças de quem manda e sobre quem chovia poder, autoridade e posses. Não é óbvio que Daniel é especial? Se eu fosse Daniel, deixar-me-ia levar. Não seguiria exactamente o mesmo trilho de Nabucodonosor, acabando deslumbrada com «o meu poder e domínio, a minha glória e majestade»? E se eu fosse Abed-Nego, não usaria a amizade com Daniel como passe e o seu poder por afinidade?
Procuramos glória de um desejo de sermos vistos, aceites, apreciados. Procurar estatuto é procurar segurança. A Nabucodonosor, tudo lhe chovia e nada chegava, como a Haman, noutra história. A Daniel, tudo lhe choveu, mas já antes disso, nada lhe faltava.
O padrão — em Daniel, Abed-Nego, Moisés,4 Paulo5 — parece ser o da dissolução do ego: não é só que não lhes interesse o que os outros pensam deles; não lhes interessa o que eles pensam de si próprios. Não têm nada a provar. Não é a admiração nem a condenação alheia que os define.
Imaginem que a ausência de Daniel era propositada. Ele podia jurar a pés juntos que isto não é sobre ele — que ele não precisa de estar; que não é ele o herói, mas este Deus de Daniel — e eu não ouviria. Não seja por isso, dizem os autores: nada mais eficaz do que uma demonstração.
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As citações são do cap. 3 do livro de Daniel, na versão BPT ou traduzidas da ESV. ↩︎
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Tradução da ESV, que diz: «O Nebuchadnezzar, we have no need to answer you in this matter. If this be so, our God whom we serve is able to deliver us from the burning fiery furnace, and he will deliver us out of your hand, O king. But if not, be it known to you, O king, that we will not serve your gods or worship the golden image that you have set up.» ↩︎
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«Quem dera que o Senhor colocasse o seu espírito em todo este povo e que todos fossem profetas!» (Números 11:29, BPT) ↩︎
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«Tenho a consciência limpa, mas isso não faz de mim inocente. É Deus quem me julga.» Tradução da NIV, que diz: «My conscience is clear, but that does not make me innocent. It is the Lord who judges me» (1 Coríntios 4:4-5). ↩︎