A ortografia como pele da língua
Em 1987, os linguistas Ivo Castro, Inês Duarte e Isabel Leiria1 fixaram uma frase que alguém disse quando começou a discutir-se o acordo ortográfico de 1986. (Ele não avançou, mas inspirou o de 1990, que temos hoje em vigor.) A frase era:
A ortografia é a epiderme da língua.
«Curiosamente», dizem eles,
para muitas das pessoas que a têm invocado, [esta frase] significa que a ortografia é totalmente convencional e que nenhuns danos, ligeiros ou profundos, podem advir para a língua de remodelações ortográficas insensatas. Na realidade, para essas pessoas a ortografia é uma maquilhagem da língua.
Que sentido dão Ivo Castro e colegas à ortografia como «a epiderme da língua»?
De facto, quando (utilizando a gíria médica) fazemos uma lesão na nossa epiderme, sabemos muito bem que ela incomoda, faz doer e pode ter consequências nos tecidos mais profundos que vão até aos danos irreparáveis (…). E mesmo quando a lesão é ligeira, ela desfeia ou desfigura… A nosso ver, é precisamente neste sentido que a afirmação acima deve ser entendida.
Por outras palavras, a escrita afecta a fala. O que lemos influencia o que dizemos. Como uma língua nunca pára, a ortografia vai requerendo atenção.
Apesar dos anos desde a sua chegada, o acordo de 1990 continua controverso. O acordo anterior (o de 1945) continua a ser usado por entidades como o Público, o Governo Sombra — e os seus três comentadores — e editoras de renome. Dois livros importantes publicados recentemente usam o acordo de 45: o Super-Camões – Biografia de Fernando Pessoa, de João Pedro George, pela Dom Quixote; e o Sexta-Feira é o Novo Sábado, do economista Pedro Gomes, pela Relógio D’Água, sobre a semana de quatro dias.
Porque será? Mesmo que venha a provar-se infundada, esta resistência justifica-se para já com um motivo: ainda estamos para ter uma conversa pública e robusta sobre o acordo ortográfico.
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No A Demanda da Ortografia Portuguesa, pela Edições João Sá da Costa. ↩︎
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