A lápide de Abraão e a ligação com uma vida cheia no texto bíblico
Abraão viveu 175 anos; morreu numa velhice feliz, repleto de bons anos, e foi sepultado junto dos outros membros da sua família. (Génesis 25:7–8, OL)
Ao ler a história de Abraão de uma ponta à outra, surge uma definição de vida cheia do ponto de vista bíblico. Abraão era respeitado (“Tu, no nosso meio, és como um príncipe de Deus”, 23:6), tinha segurança financeira (“não só em gado, como em prata e ouro”, 13:2), e, depois de pedir (“… para que me servirão as tuas bênçãos se não tenho filhos?”, 15:3) e lhe ser prometido, recebeu um filho, o que mais queria. Se excluirmos um episódio da história de Abraão, ficamos com a impressão de que ele viveu uma vida cheia porque teve tudo o que queria.
Mas o mesmo Deus que lhe deu tudo disse-lhe um dia “Pega no teu filho, Isaac, o teu único filho, a quem tanto amas, vai à terra de Moriá e oferece-o em holocausto, num dos montes que te indicar” (22:2).
No dia seguinte, de manhã cedo, [Abraão] preparou o seu jumento para a viagem, assim como a lenha necessária para o holocausto e, na companhia do seu filho Isaque e de mais dois moços, seus criados, partiu para onde Deus lhe tinha dito. Ao terceiro dia de viagem Abraão viu de longe o lugar para onde se dirigia; e disse aos moços que iam com ele: “Fiquem aqui com o animal, porque eu e o meu rapaz vamos até ali para adorar, e logo regressaremos.”
Abraão pôs a lenha do holocausto às costas de Isaque, acendeu o fogo, pegou no cutelo e prosseguiram juntos.
“Pai”, disse Isaque. “Temos lenha, temos lume para o fogo, mas onde está o cordeiro para o holocausto?”
“Deus proverá um cordeiro, meu filho.” E continuaram juntos o caminho.
Quando chegaram ao local de que Deus lhe tinha falado, Abraão construiu um altar; colocou a lenha em ordem, amarrou Isaque, deitou-o no altar em cima da lenha, e pegou no cutelo a fim de sacrificar o seu filho. Nesse preciso momento o anjo do Senhor gritou-lhe, desde o céu:
“Abraão! Abraão!” Ele respondeu: “Aqui estou!”
“Baixa a tua mão, não lhe faças mal algum. Porque já sei agora que temes a Deus, a ponto de não me recusares nem sequer o teu único e querido filho!”
Kierkegaard imagina a reação de Abraão: “não conseguia esquecer o que Deus dele exigira. Isaac crescia como antigamente; mas o olhar de Abraão turvara-se”. Como não guardou Abraão rancor de um Deus que pediu tamanho sacrifício, reminiscente de um déspota e não do Deus de misericórdia que o texto bíblico descreve?
Temos a questão do contexto, como o significado do primogénito na cultura e simbolismo judaicos. Era no primogénito que era depositada a esperança da família; era ele que recebia a parte maior da herança para que a família não perdesse o lugar na sociedade — e era a vida dele que pertencia automaticamente a Deus, por causa do pecado de Israel: “todas as famílias tinham uma dívida para com a justiça eterna”. Deste ponto de vista, Abraão não teria oferecido a esposa Sara em sacrifício; apenas Isaac, ao Deus que aparecera para levar o que era seu.
Este episódio diz-nos que Abraão morreu feliz não porque tinha tido o que pedira, mas porque “temia Deus”, ao ponto de estar disposto a abdicar do que mais queria. Uma vida cheia, segundo o texto bíblico, vem de confiar em Deus acima de tudo.
O que me chama a atenção neste episódio não é tanto a lição (embora me tenha atingido como nenhuma instrução direta) como o facto de, mesmo conhecendo esta história, nunca ter reparado neste pormenor, e nunca a ter encaixado numa narrativa maior.
O mais provável é que não estivesse a prestar atenção. Talvez só o tenha percebido agora tendo lido a história de Abraão de uma ponta à outra de uma vez. Não tendemos a ler o texto bíblico como um livro ou uma revista. Até os que acreditam o leem de nariz tapado: sustêm a respiração, mergulham fundo, retiram a lição, voltam a sair; trazem a lição sem o contexto da narrativa — sem sequer reparar que ela existia: o ritmo de leitura típico de um cristão, capítulo a capítulo, não o permite. Capítulos e versículos são uma boa forma de encontrar informação, mas, como diz o Eugene Peterson, “dão a impressão de que a Bíblia é uma coleção de milhares de frases herméticas que podem ser selecionadas e combinadas arbitrariamente para discernir a nossa sorte ou destino”.
Este pormenor, em que nunca tinha reparado, deu mais peso ao texto: não é a homilia insípida que cresce na minha cabeça entalada em estereótipos. Se ele é mais complexo do que eu pensava, pode perguntar, puxar, morder, suster. Provavelmente aguenta as perguntas que eu tiver para lhe fazer. Provavelmente as minhas perguntas são tão antigas quanto o texto em si, porque este é “o mesmo mundo, habitado pelos mesmos homens”.